Mecila

# 32 | Parte 2

Política, Religião e Filmes: Conversando com Frei Betto e Evanize Martins Sydow

Global Convivial Forum 

Sérgio Costa (FU Berlin)

Crédito: Rose Brasil/ABr

Sérgio Costa (SC): Passando mais diretamente para o tema da religião, gostaria de perguntar sobre algo que Frei Betto vem tratando também em seus trabalhos, a perda de influência da Igreja Católica e o crescimento das igrejas pentecostais, não diferenciando aqui entre as várias denominações. Como é sabido, segundo as projeções, em menos de dez anos, o número de evangélicos superará o número católicos no Brasil. As dimensões e a rapidez deste crescimento não são nada triviais, são simplesmente gigantescas. Pelo que pude ver, sua explicação, Frei Betto, passa mais pela dimensão institucional, isto é, enquanto a igreja católica reduziu muito seu trabalho junto às bases, as igrejas evangélicas investiram e investem muito na busca de fiéis. Não há dúvida que isso tem importância. Gostaria de saber, contudo, se não há também uma explicação teológica para essa mudança. Isto é, será que o êxito das igrejas pentecostais não está também associado aos conteúdos que difundem? Ao propagar aquilo que alguns chamam de teologia da prosperidade e insistir em dogmas como o família heteronormativa e tradicional, o pentecostalismo parece lograr oferecer segurança ontológica a seus fiéis num momento em que laços sociais estão abalados pela precarização, pela violência, pela polarização, etc. Por que a igreja católica não vem conseguindo responder a essa demanda espiritual não pela chave conservadora mas pela chave progressista como fez a Teologia da Libertação nos anos da ditadura?

Talvez, Evanize, você que organizou um livro recente sobre religião e política pudesse também comentar como vê esse crescimento.

Frei Betto (FB): Na minha opinião, o principal fator de crescimento das igrejas evangélicas no Brasil é a Igreja Católica. Ponto. Ou seja, aquilo que o Papa Francisco – porque a Igreja Católica hoje é um corpo conservador com a cabeça progressista, portanto, um ser esdrúxulo – tanto tem denunciado, o clericalismo. Você vai numa missa, ela dura no máximo uma hora, mas fica olhando o relógio. É chatíssimo. Aquele hora não passa, é mecânico, é sempre a mesma coisa. E pior quando o padre não sabe pregar. E pior ainda, quando não sabendo pregar, ele demora um tempão para fazer o sermão. E o pior ainda, como vi, quando, num casamento, ele fala para os noivos sobre aborto.

Aí você vai numa igreja evangélica, você é recebido afetuosamente. Se esse evento aqui fosse um culto evangélico e entrasse ali uma pessoa que nenhum de nós jamais tinha visto antes, o pastor na mesma hora diz, “irmão, por favor, entre, vamos aplaudir o irmão”. E depois daquele culto ultra-interessante, porque tem um coro que canta bem – como se canta mal na Igreja Católica! Mas se canta mal porque não tem (antigamente tinha) curso de canto. Como se toca mal. Parece o rapaz que vi aqui no portão de Brandemburgo no domingo, que estava fazendo o maior sucesso, mas de vez em quando largava a guitarra para regular o som, e a guitarra continuava. Ou seja, até eu, né? Eu vou arrumar uma guitarra dessas, porque assim é fácil. Via-se que a guitarra dele estava toda gravada ali, na caixa de som. Claro, ele cantava, coisa que não faço. E ele cantava bem. Mas o pessoal no culto toca e canta bem, depois tem vídeo, tem cura! A gente pode colocar mil interrogações sobre o que significa isso. Mas funciona, porque conta o fator psíquico. Já tive essa experiência. Eu dou bênção da saúde para amigos que depois me ligam, agradecendo: “Você veio aqui, me deu essa bênção, deu uma melhorada. Estou me sentindo mais disposto”. Porque isso é psicológico, assim como você receber uma péssima notícia te deixa para baixo, receber uma boa notícia mexe com a sua autoestima, são detalhes assim. Então creio que o principal fator é o retrocesso da Igreja Católica, a misoginia, o clericalismo.

Pouca gente sabe disso, mas a Igreja Católica é um corpo que tem 24 braços, 24 segmentos católicos no mundo ligados ao mesmo papa. Só um, o romano, exige o celibato obrigatório. Só um. Para os outros 23 é optativo, quer casar, casa e continua sacerdote. Não quer casar, não casa. Mas o romano, que é o predominante aqui no ocidente, insiste no celibato obrigatório. E depois vem o problema dessa forte misoginia, que é impedir a mulher de chegar aos vários graus da hierarquia católica, inclusive a papa. Não há nada no Evangelho contra isso. Pelo contrário, no grupo de Jesus, havia mulheres cujos nomes são conhecidos, abra o Evangelho de Lucas, capítulo 8, versículo 1. Não sou protestante, mas decorei… Você olha lá, encontra o nome das mulheres do grupo de Jesus. Geralmente o protestante sabe citar a Bíblia mais do que o católico. Porque católico também não tem curso bíblico, fica no sermão, mas o protestante estuda a Bíblia.

Há também a questão dos costumes, que é importante. Costumes mudam a vida da gente. Por causa de uma relação afetiva, você larga a Bahia com aquele calor maravilhoso, e vem morar aqui na Alemanha com esse frio como está fazendo hoje e fez ontem. Mas vem porque está apaixonado por alguém. Quer dizer, a questão do costume é uma questão muito séria na mobilização subjetiva das pessoas e objetiva em decorrência disso. E, no entanto, a esquerda sempre ignorou. Parece escola. Os que foram alunos de colégio religioso sabem – eu, felizmente, só fui nos quatro anos de ginásio, o resto todo foi escola pública. Mas nunca a escola tocou nos seguinte temas: sexo, fracasso, ruptura afetiva, doença, morte, situações pelas quais todo ser humano passa. Nunca a escola abordou os temas essenciais da existência humana. Passa por cima, ou seja, a família fica esperando que a escola ensine e a escola fique esperando que a família ensine. E aí aprende-se na rua. E quando mais se aprende na rua, mais bobagens se faz. O meu pai dizia, sexo e política, quando mais você aprende na rua, mais bobagens você faz nas urnas e na cama. Então é isso, porque as pessoas evitam tocar nesse tema. Creio que tem muito chão ainda para caminhar.

SC: Obrigado, Frei Betto, eu não sei se você, Evanize, gostaria de acrescentar alguma coisa.

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Evanize Sydow (ES): Só tem um aspecto que talvez seja importante também, que é a comunicação. É a maneira como as religiões neopentecostais se apropriaram dos canais de comunicação, principalmente os digitais, que não só a esquerda não domina, mas a Igreja Católica também não. Então eles são muito mais interessantes, muito mais criativos. E mesmo jovens católicos preferem assistir cultos nas redes sociais. Eu inclusive já assisti vários, eles são muito mais interessantes de ver. Então eu acho que os canais de comunicação são um outro tema que a gente precisa tocar quando se fala de religião e política hoje em dia no Brasil.

SC: A próxima pergunta é sobre clima e meio-ambiente, parte também menos conhecida das reflexões de Frei Betto. Em um pequeno livro, no qual discute a encíclica do Papa Francisco de 2015 sobre o cuidado da natureza, nossa casa comum, com o sociólogo e teólogo belga François Houtart, infelizmente já falecido, Frei Betto aponta que a natureza pode ser vista, juntamente com a Bíblia, o magistério e a tradição, como fonte da revelação divina. Aqui eu me permitiria colocar alguns problemas, ainda que a ideia me pareça encantadora. Se partimos da história da Igreja Católica, ou até mesmo da história do cristianismo, eu diria que as religiões cristãs foram um dos fatores mais fortes daquilo que Nego Bispo chamou de cosmofobia, ou seja, a rejeição e destruição de muitas outras cosmologias e de religiões animistas que, com o seu politeísmo, mostram a continuidade ente seres humanos e natureza.

O que eu pergunto, Frei Betto, é se, de fato, é possível do ponto de vista teológico (já nem digo do ponto de vista institucional), a religião católica fazer essa virada, deixar de ser antropocêntrica para pensar nos seres humanos não como os donos de uma natureza da qual eles podem se servir, mas como aqueles que devem cuidar da natureza, como filosofias indígenas e quilombolas nos ensinam. Ou seja, é possível imaginar um cristianismo, e eu acrescentaria, igrejas ou religiões monoteístas, que não sejam antropocêntricas? Isso não seria, digamos, a quadratura do círculo?

FB: É, essa afirmação de que a natureza é fonte da revelação divina é herética aos olhos dos meus confrades dominicanos, que somos todos discípulos de Santo Tomás de Aquino. E essa afirmação vem de Santo Agostinho. Santo Tomás foi muito esperto. Ele, em suas obras, crítica inúmeros autores que o precederam, inclusive Agostinho. Ele diz: “Quem lê a Suma vê, Agostinho disse, pá, pá, pá, pá, pá, eu, porém…”, e arrasa com Agostinho. Ele jamais criticou alguém vivo. Foi muito esperto. Jamais criticou um vivo. Só critica quem já morreu. E Agostinho dizia que Deus nos entregou dois livros. Pela ordem, primeiro, a natureza. E segundo, a Bíblia . De modo que, a partir do segundo, podemos ter a luz para enxergar melhor o primeiro. Isso é muito bonito! Então o Papa Francisco certamente conhece isso, certamente ele também –  ele, ele não afirma, como afirmo claramente. Claro, não sou papa nem candidato a papa, embora possa ser eleito, porque pelo direito canônico qualquer católico ou homem batizado, mesmo casado, como já aconteceu historicamente, pode ser eleito papa – mas fecha o parênteses, a não ser que alguém esteja interessado aqui. Mas, enfim, o papa dá a entender isso na encíclica Laudato si’ (2015), que é uma encíclica revolucionária, porque pela primeira vez na história, um papa faz uma encíclica sobre a questão ambiental. E ele fica irritado quando alguém diz, “obrigado que o senhor fez encíclica verde”. Verde, droga nenhuma, é sócioambiental. Ele quer mostrar que as principais vítimas do desequilíbrio ambiental são os pobres e as consequências que isso tem. Então creio que isso poderia ser incorporado.

Evidente que você pegou a dimensão holística das tradições de matriz africana, que é muito rica. Mas eu, por intuição, muito antes dessa encíclica, eu já tinha produzido um livro, A Obra do Artista: uma visão holística do universo (2012), fazendo uma leitura ao mesmo tempo científica, entre aspas, porque não é um livro de intenção científica, não é o meu ramo, mas uma descrição com a linguagem científica dos sete dias da criação, do Big Bang ao surgimento do ser humano. Nesse livro, mostro essa interação entre nós e a natureza e ressalto esse aspecto: A natureza viveu bilhões de anos sem a nossa incômoda presença, bilhões de anos! Ora, ao longo desses bilhões de anos, ela criou e extinguiu várias espécies, a mais conhecida os dinossauros, há 70 milhões de anos. Ela pode tranquilamente extinguir a espécie humana e continuar o seu caminho sem a nossa incômoda presença. Por uma razão muito simples, porque em nada ela precisa de nós. Agora descubra nessa sala algo que não veio da natureza. Não tem nada que não veio. Tudo, esse tapete, esse teto, essa garrafa, esse microfone. Nós mesmo, tudo veio da natureza. A matéria-prima de tudo o que existe nessa sala decorre da natureza, então nós não podemos prescindir da natureza. Mas ela tranquilamente vive sem a gente, se resgata, se recupera. Falam de ogivas nucleares, mas nada impede que um novo meteoro como aquele que caiu no Golfo do México, amanhã, caia lá em Belo Horizonte, na nossa terra.

SC: Gostaria de finalizar essa rodada de perguntas com uma pergunta sobre política internacional.

Ainda que aspectos como a proteção do trabalho decente, a justiça social e a defesa da democracia e dos direitos humanos continuem sendo temas caros às forças progressistas na Europa e na América Latina, a política internacional representa, hoje, um campo onde a esquerda latino-americana e a esquerda europeia apresentam posições irreconciliáveis. A esquerda na América Latina, escaldada pelas experiências traumáticas do colonialismo e do imperialismo, parece apostar numa ordem mundial multipolar, na qual Rússia e China têm papel de destaque. As forças progressistas europeias, pelo menos verdes e social-democratas, não aceitam China e Rússia como aliados, ao contrário, apostam ainda na Europa Ocidental como polo de virtude capaz de garantir a hegemonia de um ocidente esclarecido e humanista. Frei Betto, como humanista de profundas convicções que é, como vem acompanhando essas discussões?

FB: O grande problema, a meu ver, na esquerda europeia, se é que ela ainda existe – na América Latina se diz que na Europa só há uma pessoa de esquerda e mora no Vaticano, que é o Francisco –, o grande pecado histórico da esquerda europeia é que ela tinha ideologia, cultura, as cabeças mais iluminadas da intelectualidade europeia, enorme capacidade de organização e também convicções revolucionárias enormes – muitos deram a vida pela causa. Só faltou um detalhe: povo, só faltou isso. E trabalhar com os mais pobres, aí era complicado.

Eu me lembro, [Louis] Althusser que contava isso. Havia muito tempo que um grupo de professores marxistas da Sorbonne queria aproveitar um feriado prolongado para ir para o interior fazer um seminário. Aí começou a greve de 68, eles não deram muita importância àquele movimento estudantil. Falaram, vamos aproveitar que a universidade está fechada, vamos lá para a cidadezinha fazer o nosso seminário. Foram para o seminário. Só que de repente eles viram pela televisão que o negócio começou a pegar fogo e que era uma coisa nova, não era uma paralisação que ia durar dois, três dias, e aí quiseram voltar para Paris como bons marxistas para participar. Só que também os ferroviários estavam em greve e eles ficaram isolados.

Então é isso que acho que falta na tradição europeia. Faltou um contato com o povo. Quando o muro de Berlim caiu, caiu sobre a cabeça da esquerda europeia. Por quê? Porque ela não tinha raízes populares. Para mim, é essa a questão.

Gente, muito obrigado, que Deus nos abençoe.