Mecila

# 33

Territórios em trânsito: a música africana nas mediações transnacionais do pertencer

Global Convivial Forum 

A migração não somente rompe, mas (re)conecta. Coloca em movimento objetos, pessoas e símbolos e opera um recriar de subjetividades edificadas em diferentes lugares.

Caio da Silveira Fernandes (Mecila Urban Narratives Fellowship)

Imagem de Caio da Silveira Fernandes

Imagem de Roberta Hessa.

Foto 1 – Workshop de dança e percussão 28ª Festa da Imigração

Foto 2 – Workshop de dança e percussão “Centro de Estudos e Cultura da Guiné”

O pertencimento é um dos aspectos mais debatidos na migração internacional. Historicamente, sua concepção privilegia uma compreensão vinculada, exclusivamente, ao país de nascimento. Pertencer, assim, torna-se o resultado da soma: território fixo e estável, presença física, determinados corpos desejados e o compartilhar de símbolos nacionais. Sob essa lógica, o movimento, migrar, converte-se em anomalia, em paradoxo insolúvel entre ser de um lugar, mas viver em outro, interditando imaginários de novas maneiras de se sentir parte.

Por outro lado, cada vez mais o fundamento do rompimento do pertencer ao migrar tem sido questionado e uma das vertentes mais marcantes dessa reconsideração tem sido um olhar transnacional. Sob essa perspectiva, a atenção volta-se, sobretudo, às simultaneidades da experiência migratória em vários campos sociais, culturais, políticos e espaciais. O principal argumento é que a migração não somente rompe, mas (re)conecta. Coloca em movimento objetos, pessoas e símbolos e opera um recriar de subjetividades edificadas em diferentes lugares.

Foi a partir dessa conflitividade que o projeto “Espaços invisíveis da cidadania: a música como mediadora do pertencimento transnacional” foi concebido e executado através do programa de bolsas Urban Narratives do Mecila. Mais especificamente, privilegiou-se duas interfaces pouco aprofundadas nos estudos migratórios: i) lugares cotidianos fundados pela mobilidade e por sujeitos tidos como “estrangeiros” por serem de outros lugares, possuírem corpos, vestimentas e sotaques indesejados para a ideia de nação e, portanto, raramente reconhecidos como parte constitutiva dos territórios; ii) a música como elemento fundamental para mediar convivialidades mesmo em contextos muito desiguais, potencializando um redesenhar das cartografias do pertencimento. O objetivo, portanto, foi confundir hierarquias, tornar o suposto universal em materialidade situada e indagá-lo através de ritmos e sons africanos.

Como referência a esses trânsitos do ser e estar, o projeto organizou, no mês de novembro de 2023, três oficinas de dança e percussão de ritmos do oeste africano comandadas por quatro migrantes músicas/os de Guiné Conacri que residem em São Paulo. Os dois primeiros workshops ocorreram na programação da 28ª Festa do Imigrante, realizada pelo Museu da Imigração do Estado de São Paulo. O terceiro ocorreu no Centro de Estudos e Cultural da Guiné, localizado na Baixada do Glicério, distrito da Liberdade, centro da capital paulista. Durante 2 horas em cada um dos dias, os e as participantes foram convidadas a tocar djembê, dundum, kenkeni e sangban e dançar ritmos como sofa, soko, kassa, sinte, provindos de regiões e culturas malinke, faranah e boke.

Foto1_CaioSF

 

As músicas vivenciadas, tocadas e dançadas interpelavam aos graves e agudos a rigidez e fixidez do pertencer ao apresentar diversas facetas em/da mobilidade física e simbólica. Convidava os e as participantes a migrar através de cadências, vozes, sotaques. Estimulava a confundir o cá e o lá; proximidade e distância; ausência e presença. Afinal, quem era e quem não era parte daqueles lugares? Por quê? Quais as espacialidades e temporalidades desses pertencimentos? Como se (des)estabilizavam a partir da experiência cotidiana e musical?

A lógica inversa na hierarquia de pertencimentos, que posicionava os migrantes como protagonistas e deslocava os nacionais buscava, justamente, provocar reflexões e questionamentos à ideia de nação (em todas a suas dimensões), bem como apontar horizontes possíveis a territorialidades e pertencimentos múltiplos e transitórios. Territórios em trânsito. Não que estranhamentos, curiosidades, desconfortos fossem capazes de recriar, por si, imaginários tão enraizados, mas, ao menos suspendê-los momentaneamente.

Foto2_CaioSF

 

Ao longo desses três dias de workshop, registros audiovisuais foram feitos no intuito de captar momentos dessas interações e materializar através de imagens as distintas figurações desses trânsitos. Como última fase do projeto, parte desse material irá compor uma exposição temporária no Museu da Imigração do Estado de São Paulo que será inaugurada no domingo, dia 02 de junho. Através dessas representações, a exposição destacará a mobilidade das formas culturais e seu aspecto mediador de práticas e subjetividades transnacionais dos territórios em trânsito. Assim, a exposição ampliará as reflexões sobre um reelaborar do pertencimento em um espaço de memória que, historicamente, escanteou de seus acervos a presença e protagonismo de migrantes não europeus na produção da cidade e do estado de São Paulo. Questionar esses apagamentos é imprescindível tanto para revisitar o passado de forma crítica, como para repensar suas reproduções desiguais na atualidade no intuito de transformá-las. Para tal, um reimaginar do pertencer em suas múltiplas dimensões é condição indispensável.