Mecila

#36

Lições do Zócalo

Global Convivial Forum 

Samuel Barbosa (USP / Mecila)

A Cátedra Mecila permitiu uma imersão na rica cultura mexicana. Fui introduzido a uma bibliografia do maior interesse para minhas pesquisas, conheci ativistas e pesquisadores de diversas instituições do México, explorei arquivos, aprendi com a história pública dos monumentos, museus, templos e festas.

Conferência de Paulo Freire. Arquivo CIDOC/Colmex

Projeto de Pesquisa sobre Aspectos Jurídicos e Sociais da Propriedade da
Terra na América Latina de Francisco Julião. Arquivo CIDOC/Colmex

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Fiz a fotografia para fins de registro em minha viagem à Cidade do México em fins de 2023. É do mural de Diego Rivera, Los sabios (1928), que se encontra no segundo andar da Secretaría de Educación Pública (SEP). O edifício foi um convento colonial. Com o fim da Revolução Mexicana, foi transformado em prédio de governo pelo secretário José Vasconcelos durante o governo de Álvaro Obregón (1920-1924). Seria o jurista Ruy Barbosa um dos representados por Rivera?

Outra surpresa foi encontrar a inscrição positivista “Orden y Progreso”, bem conhecida dos brasileiros, no Antigo Colegio de San Ildefonso que foi dos jesuítas e, em 1867, no governo de Benito Juárez, se converteu na Escuela Nacional Preparatoria, laica, pública e propriedade do Estado. Mais um indício do que pode ligar Brasil e México?

Questões como essas surgiram da minha estadia como pesquisador-visitante no El Colegio de México, entre outubro e dezembro de 2023, no âmbito da Cátedra Mecila.

A Cátedra é um dos instrumentos de colaboração científica da fase principal do Mecila. Possibilita a circulação de pesquisadores entre as instituições da América Latina que criaram o Centro. Pesquisadores permanentes, que trabalham em uma das instituições latino-americanas (USP, Cebrap, Colmex, UNLP), recebem o apoio para um período de pesquisa de até dez semanas em outra instituição do consórcio.  

Entre os meus compromissos, estava ministrar uma Distinguished Lecture, no âmbito do Seminario permanente Derecho y Sociedad (Colmex), coordenado por José Ramón Cossío e Humberto Beck, que recebeu comentários de Érika Bárcenas (UNAM). Apresentei uma crítica ao conceito de pluralismo jurídico, que tem ampla circulação nas ciências sociais na América Latina, e o conceito alternativo de multinormatividade. O segundo compromisso foi participar do International Workshop Indigenismos en América Latina II que contou com a presença de pesquisadores do Colmex, de outras universidades mexicanas e do exterior, e de lideranças indígenas. Apresentei uma comunicação sobre o regime jurídico dos povos indígenas e tradicionais no Brasil pós-ditadura. Na preparação para os eventos, complementado com as discussões, tomei conhecimento da bibliografia mexicana sobre indigenismo. Inicialmente uma política de Estado para assimilar culturalmente os povos originários (Fábregas Puig 2021), foi objeto de uma crítica de grande envergadura (Bonfil Batalla 2019). Esse movimento pode ser comparado com proveito ao percurso no Brasil do Serviço de Proteção aos Índios (SPI)/Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) para o indigenismo, entidades da sociedade civil e do movimento indígena.

Durante meu período de pesquisa, tive a oportunidade de visitar o arquivo do Centro Intercultural de Documentación (CIDOC), fundado por Ivan Illich (1926-2002), de posse da biblioteca do Colmex. Como se sabe, Illich foi um importante intelectual de origem austríaca que fundou o CIDOC em 1965 em Cuernavaca (México). No seu livro Tools for Conviviality (1973), ele introduziu o conceito de convivialidade, um dos marcos de referência do programa de pesquisa do Mecila. Tive conversas produtivas com pesquisadores da obra e atividades de Illich, como Humberto Beck (Colmex), Jaime Arenal (Centro de Estudios Interdisciplinares – CEID) e Maria Luisa Aspe (CEID). A visita e as reuniões me permitiram conhecer os tipos de documentos da coleção do CIDOC, bem como ter informações sobre a localização da coleção pessoal de Illich que encontra-se dispersa.

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Além dos pesquisadores citados, a Cátedra foi uma oportunidade inestimável para conhecer renomados pesquisadores de história do direito do Instituto de Investigaciones Históricas da UNAM, como Elisa Speckman Guerra (diretora do Instituto) e Andres Lira (ex-presidente do Colmex).

Voltando a Ruy Barbosa e à inscrição “Orden y progreso”…

Retiro as minuciosas observações, fornecidas por email pelo historiador José Ignacio Lanzagorta Garcia, que conduziu uma excursão pelo muralismo no centro de Cidade do México, da qual participei com Barbara Göbel (IAI / Mecila) e Rosário Aparicio (Colmex).

O mural de Diego Rivera faz parte de uma série na Secretaría de Educación Pública, encomendada por José Vasconcelos em 1923. Vasconcelos é representado de costas, com a pena na mão sobre o elefante branco. À época da conclusão do mural, Rivera e Vasconcelos estavam rompidos. Vasconcelos havia se lançado candidato à presidência para as eleições de 1928 por um partido distinto do partido da Revolução. Os outros personagens do mural estão associados à célebre viagem de Vasconcelos à América do Sul e às influências exotizantes e burguesas sobre o pensamento de Vasconcelos. São retratados o escritor indiano Rabindranath Tagore, a atriz e cantora argentina Berta Singerman, o poeta Juan José Tablada, tocando lira, e o homem sentado sobre os livros (de Comte, Spencer, Stuart Mill etc.). Quem seria? Pela semelhança física, pelos livros, e em razão da viagem de Vasconcelos ao Brasil, fiz a sugestão na ocasião que poderia ser Ruy Barbosa. José Ignacio então acreditou ser plausível. Depois aprofundou a pesquisa para concluir se tratar de Ezequiel A. Chávez, um educador vinculado à fundação da UNAM (foi duas vezes reitor), fundador da Faculdade de Filosofia e Letras e próximo ao círculo de Vasconcelos. Mas José Ignacio não descarta minha hipótese atrevida: “la asociación con [Ruy] Barbosa no es descabellada”, me escreveu. Vasconcelos admirava Ruy, a quem citou elogiosamente em seu livro Raza cósmica (1925).

Eu já havia lido superficialmente sobre o positivismo no México, mas encontrar a divisa de Augusto Comte me surpreendeu. José Ignacio me informa que Benito Juárez escolheu o intelectual Gabino Barreda como diretor da Escola Nacional Preparatória. Barreda teve uma passagem pela França, onde conheceu Comte e o modelo positivista das instituições educativas francesas. A inscrição “Orden y progreso” foi colocada, nos tempos de Barreda, sobre o portal de pedra do antigo edifício jesuíta. O prédio também recebeu outras inscrições da narrativa revolucionária e nacionalista, além dos murais do José Clemente Orozco, David Siqueira e Rivera. 

A Cátedra Mecila permitiu uma imersão na rica cultura mexicana. Fui introduzido a uma bibliografia do maior interesse para minhas pesquisas, conheci ativistas e pesquisadores de diversas instituições do México, explorei arquivos, aprendi com a história pública dos monumentos, museus, templos e festas.

Pude me beneficiar das excelentes condições de trabalho do Colmex. Agradeço a Micaela Chávez Villa, diretora da Biblioteca Daniel Cosío Villegas e Mayra Mena do Fondos y Colecciones Especiales da Biblioteca. Gostaria de agradecer especialmente pela acolhida formidável, pela organização das atividades acadêmicas e pelos contatos com os pesquisadores mexicanos aos professores e pesquisadores-principais do Mecila Laura Flamand e Carlos Alba, à Dr Rosario Aparicio, e à professora Lorenza Villa Lever (UNAM). À Barbara Göbel, diretora do IAI e diretora do Mecila à época e responsável em implementar a Cátedra Mecila. Barbara também participou do Workshop de Indigenismos e pode testemunhar minha surpresa com os murais de Rivera. À José Ignacio Lanzagorta, que nos conduziu aos prédios públicos e igrejas na região do Zócalo.

O que aprendi com Carlos Alba foi muito mais do que consigo expressar.

Voltei a São Paulo com novos interlocutores, a moleskine completa de anotações e 60 quilos de livros e documentos.

Bonfil Batalla, Guillhermo (2019): México profundo. Una civilización negada, Cidade do México: Fondo de Cultura Económica.

Fábregas Puig, A. (2021): El Indigenismo en América Latina, Cidade do México: El Colegio de México.