Transformação urbana em disputa: o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo
Global Convivial Forum
Nesta conversa com a professora e pesquisadora Bianca Tavolari (Mecila/ Cebrap/ Insper) discutimos o que é o plano diretor, quais as disputas em torno de sua revisão e como o instrumento ajuda a desenhar os rumos da cidade.
Qual o papel do plano diretor?
O plano diretor é uma espécie de Constituição da cidade. Ele não só propõe como a cidade deve se organizar, mas também uma imagem de seu desenvolvimento futuro.
O plano define como a cidade vai crescer, o tamanho das edificações, como pensar os espaços públicos e seus usos, a rede de transporte público, onde estimular moradia.
Também regulamenta usos específicos. Onde teremos usos comerciais ou residenciais do espaço urbano; quais áreas específicas dentro da cidade merecem proteção ambiental e onde não é permitido construir, ou apenas construir pouco; como integrar a malha de transporte a oportunidades de emprego; onde estarão os equipamentos culturais.
Como esse instrumento pode intervir nas desigualdades urbanas?
Um dos elementos do Plano Diretor Estratégico [PDE] de São Paulo de 2014 aborda justamente isso. Uma das propostas aprovadas é a ideia de eixos de estruturação urbana. Tomam-se todos os elementos consolidados e planejados de transporte público – as linhas de ônibus, de trem, de metrô, as estações – e desenham-se áreas em torno dessa estrutura.
O objetivo é adensar essas áreas, colocar o máximo possível de pessoas para morar perto dessa estrutura de transporte público. Assim aproximamos a moradia ao transporte, e consequentemente ao emprego. É uma maneira de enfrentar um dos principais problemas de cidades como São Paulo: o movimento pendular de pessoas que moram em bairros periféricos e vão trabalhar em zonas centrais, passando longo períodos no transporte público, perdendo momentos de vida. É uma forma de enfrentar uma desigualdade territorial que se expressa também em tempo de vida, na diferença entre ficar ou não três horas no trânsito para chegar ao trabalho.
Mas não é qualquer moradia que o plano prevê nessas áreas. Se construímos apartamentos de 120 metros quadrados com três vagas de garagem, não atraímos a pessoa que mora na periferia. Ela não vai poder comprar esse imóvel. Então o plano também propõe uma série de elementos construtivos para que se garanta uma mistura de unidades habitacionais nos eixos.
O contrário também é verdade, se pensarmos nos polos de criação de empregos nas periferias. Em vez de só trazer pessoas para perto do transporte público consolidado, é igualmente importante induzir, por meio de incentivos urbanísticos, a oferta de emprego em regiões residenciais já estabelecidas. Assim também evitamos deslocamentos longos e aproximamos as pessoas de oportunidades. Essa é uma ideia que também está no Plano Diretor de 2014.
A revisão do Plano Diretor envolve muitas disputas. Você pode contextualizá-las?
Costumo dizer que a política urbana é treta. É briga o tempo inteiro em torno do plano diretor e especialmente do zoneamento, que define os usos do espaço urbano em cada lugar. São instrumentos de disputa intensa que envolvem atores repetidos, pessoas que interagem também em outros contextos. São atores muito qualificados lutando por essas regras há tempos, e as disputas se expressam abertamente nesse campo de batalha.
Só em 2014 foram mais de cem audiências públicas temáticas regionais com devolutivas. O processo incluiu não apenas ouvir as pessoas, mas também contar o que foi incorporado ou não ao planejamento. E, mesmo assim, o plano daquele ano só foi aprovado depois que os movimentos de moradia organizados acamparam em frente à Câmara Municipal para garantir que ele fosse votado sem a inclusão de nenhum “submarino”, que são as emendas que emergem de última hora e mudam acordos já previstos no Plano.
Do ponto de vista da sociedade civil, tivemos no último Plano Diretor de São Paulo uma discussão muito intensa sobre mobilidade, com a participação de movimentos organizados de ciclistas, que reivindicavam a expansão das ciclofaixas. Há os movimentos de moradia, que são muito organizados e têm um conhecimento técnico preciso e rico sobre essas questões. Vários movimentos de cultura, pensando cinemas de rua, usos de espaços públicos. Há os movimentos e associações de bairro, como os que estão presentes em Zonas Exclusivamente Residenciais (ZER) e que não querem mudar as regras do entorno para incluir outros usos. Há o mercado imobiliário também, muito atuante. Mas muito depende de como é o desenho das audiências. É importante que todas as pessoas sejam ouvidas, inclusive aquelas não organizadas em movimentos.
Além disso, é difícil participar de um processo de revisão de plano diretor. É uma discussão muito técnica. Uma das propostas dos atores da sociedade civil é que a gestão democrática das cidades envolva não só o direito à participação e à palavra, mas também a tradução desses estudos técnicos, de responsabilidade do poder público. São decisões que impactam a vida de todo mundo e não podem ser blindadas por uma linguagem técnica excludente. Esta não é apenas uma demanda da sociedade civil, mas também dos órgãos do sistema de justiça, como o Ministério Público e a Defensoria Pública, que recomendam e exigem condições de participação com acesso pleno à informação.
A prefeitura de São Paulo propôs a prorrogação da revisão do Plano Diretor de São Paulo para 2022, após pressão de atores do sistema de justiça e da sociedade civil. Quais os principais conflitos à vista?
A revisão estava prevista. Isso é muito comum em planos diretores. Como é uma política que projeta para o futuro, ela tem que ser recalibrada em função de como a cidade se transformou no meio tempo. Mas agora tem o agravante de que é uma revisão proposta ainda em meio à pandemia. E a sociedade civil organizada tem trazido duas questões muito importantes.
A primeira questão é a impossibilidade de participação em uma política tão importante quanto essa se tudo ocorrer online. Há entraves à participação de pessoas menos organizadas, que não têm bom acesso à internet. Imagina uma audiência enorme com um monte de gente com as mais diferentes conexões, ou mesmo sem acesso à internet.
A segunda questão é que não é possível estimar com precisão alguns dos efeitos da pandemia na cidade. Vou dar um exemplo. A gente viu que parte dos serviços conseguiram funcionar em home-office, que foi adotado por boa parte das empresas que podem se valer do trabalho remoto. Isso impacta diretamente lugares com muitos prédios de escritório, como, por exemplo, as regiões das avenidas Faria Lima, Berrini e Paulista.
Será que essa tendência vai se confirmar, ainda que seja para uma camada muito privilegiada? Se as empresas decidem não mais ter escritórios grandes e optam por um regime híbrido de trabalho, porque entendem que funciona bem e custa menos, ficamos com um problema enorme de espaço construído. O que fazer com todo esse espaço? Precisamos pensar uma mudança de uso. Seria possível adequá-los para moradia? Isso envolve planejamento.
Ou seja, não faz sentido revisar um plano diretor pensando o futuro sem saber o impacto desse tipo de transformação. E não é por falta de dados ou habilidade, mas porque não temos como saber se essa tendência vai se confirmar ou não.
Eu escrevi um texto tratando de ilegalidades no processo de revisão do Plano Diretor, uma das quais está diretamente relacionada à sub-representação da sociedade civil no Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU).
Então tem conflito em todos os lugares. Do ponto de vista do conselho que vai ser ouvido para falar de política urbana; do processo de aprovação; de incluir e ouvir mais pessoas; e do ponto de vista do conteúdo material dessa revisão.
Recentemente, a prefeitura propôs o adiamento após defender expressamente que o plano deveria ser revisto ainda este ano. Foi um recuo evidente. Ele pode ser explicado principalmente em razão de uma decisão judicial, em uma ação popular ajuizada por Guilherme Boulos, a Bancada Feminista do PSOL e os movimentos de moradia que questionou a contratação de uma fundação que faria estudos para a revisão, pelo valor de R$3,5 milhões, sem licitação. Este recuo gerou um xadrez importante entre sociedade civil, sistema de justiça, prefeitura e Câmara municipal. É neste impasse que estamos agora.
Além dos problemas novos trazidos pela pandemia, há também disputas antigas sobre a cidade que retornam à arena. Quais você destacaria?
Há uma disputa clássica que envolve setores empresariais, mercado imobiliário e suas associações em relação à chamada outorga onerosa do direito de construir. Parece complicado, mas a outorga é uma concessão, uma autorização. Onerosa porque ela não é gratuita, você paga.
O que isso quer dizer? Quando compramos um terreno, não podemos fazer com ele o que bem quisermos. É contraintuitivo, mas você não pode construir do jeito que quiser. Aqui em São Paulo foi estabelecido um coeficiente de aproveitamento, o chamado CA 1, segundo o qual você pode construir até uma vez o tamanho do terreno. Se o seu terreno é de mil metros quadrados, então você pode construir uma edificação de mil metros quadrados. Se você quer construir mais, você não está proibido, mas precisa pagar. Esse custo é a outorga onerosa do direito de construir.
Por que isso existe? Porque esse potencial construtivo é público, ele não vem com a sua propriedade. Imagina se todo mundo pudesse construir da maneira que quisesse, como planejaríamos a cidade? Além disso, esse espaço de construção, ainda que seja muito grande, é finito. Por isso faz sentido que o poder público precifique isso como um bem comum. E a um preço razoavelmente alto.
Esse dinheiro, que o construtor ou proprietário paga, vai para o Fundo de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB), e com ele custeamos uma série de políticas específicas para mobilidade, habitação de interesse social etc. Ele está separado do caixa da prefeitura e tem algumas rubricas carimbadas. É um mecanismo de financiamento de políticas urbanas importantes para a cidade de São Paulo.
Uma das disputas antigas é sobre o preço da outorga. O mercado imobiliário vai dizer que tem que ser mais barato, porque o valor alto desestimula o adensamento. «Você quer que eu adense nos eixos? Eu quero construir, mas se você me cobra muito caro, eu não vou fazer”, raciocinam.
Outra coisa é como gastar os recursos que vêm do FUNDURB. O Plano Diretor de 2014 estabelecia uma cota de 30 porcento para transporte público e mobilidade ativa. Ciclovias, calçadas. Andar a pé, aliás, é o principal meio de locomoção de São Paulo. Mas uma lei em 2019 alterou esse critério, incluindo também obras de infraestrutura viária. Aí está a disputa: reforçar um modelo que sempre privilegiou os carros, ou colocar o transporte público no modelo e investir o recurso nisso?
Uma outra discussão é sobre miolos de bairro. Existe a ideia de que o adensamento e o crescimento são maiores quanto mais próximo das ruas, das grandes avenidas. Com isso, o miolo do bairro fica mais baixinho. Essa é outra demanda histórica do setor imobiliário, crescer em miolos de bairros.
Há ainda a discussão sobre as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), aquelas que devem ser destinadas para habitação de interesse social. Parte do mercado imobiliário quer tirar as ZEIS de onde elas estão, porque algumas são muito bem localizadas e impedem a expansão ou a construção de empreendimentos específicos.
O debate sobre o Plano Diretor parece uma oportunidade concreta de participação dos cidadãos no planejamento da cidade. Mas talvez muitas pessoas desconheçam o dispositivo.
A gente está muito capturado pela discussão federal. Com muitas boas razões, porque estamos diante de uma crise sem precedentes da nossa democracia, com um presidente que afronta a Constituição, todo dia um novo escândalo, um novo absurdo. Mas esquecemos a discussão municipal.
Vale a pena prestar atenção especialmente nas cidades que estão revisando os seus planos diretores, porque isso impacta concretamente o dia a dia.
As desigualdades territoriais passam pela formulação dessas legislações. Então, se queremos enfrentar essas questões e mudar a forma como as nossas cidades estão sendo pensadas, precisamos nos inteirar sobre esses processos.
Uma coisa que vemos nas audiências, seja do Plano Diretor ou de zoneamento, é que as pessoas querem falar sobre o seu bairro, a coleta do lixo, a iluminação. Às vezes essas demandas nem vão ser tratadas no plano diretor especificamente, mas você vê que é o lugar onde as pessoas vocalizam isso, pois não conseguem encontrar outros espaços. Então o plano diretor é também um espaço onde as pessoas podem ser ouvidas.
Fonte das imagens: gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/
Leia e ouça mais sobre convivialidade e desigualdade em cidades latino-americanas:
Mecila Working Paper Series No. 11: Ramiro Segura, “Convivialidad en ciudades latinoamericanas”.
Diálogos Mecila, ep. 10: “Cidades desiguais: modos de ver”.