Memória, silenciamento, apagamento e identidade na escrita de Lúcia Hiratsuka e Rafaela Kawasaki
Simone Toji (Junior Fellow Mecila)
Sombras III. Arquivo pessoal de Simone Toji.
Sombras I. Arquivo pessoal de Simone Toji.
Um enterro de livros. Uma detenção por se falar outra língua que não o português. Estas são algumas das imagens que as escritoras Lúcia Hiratsuka e Rafaela Kawasaki evocam ao escrever sobre a vivência de famílias de migrantes japoneses e seus descendentes no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. Para elas, estas imagens não são somente elementos que constroem suas ficções, mas ecoam memórias que de diferentes maneiras habitam suas experiências pessoais e familiares.
Nascidas no Brasil, de avós que emigraram do Japão ainda nas décadas de 1920 e 1930 respectivamente, ambas atribuem um papel central à memória no desenvolvimento de algumas de suas narrativas. Em Os livros de Sayuri (SM, 2008), Lúcia Hiratsuka partiu das reminiscências de sua mãe sobre o momento em que viu os pais enterrando os livros de casa quando era criança. Em Peixes de aquário (Urutau, 2021), Rafaela Kawasaki se voltou aos relatos esparsos de seu avô sobre as proibições a que ficou sujeito durante a Segunda Guerra. Enquanto o primeiro livro foi concebido como narrativa infanto-juvenil, o segundo é considerado um romance histórico. Apesar das diferenças de gênero entre as obras, ao explorar memórias familiares pouco comentadas, as duas autoras trazem à luz histórias há muito tempo silenciadas, que surgem como testemunhos da violência realizada por autoridades e cidadãos brasileiros a inúmeros indivíduos e grupos de origem japonesa nas décadas de 1930 e 1940.
Silenciamento e apagamento
Para Rafaela Kawasaki, constituir seu texto e personagens a partir da memória dos atos repressivos executados pelo governo brasileiro dessa época é poder “falar dos impactos dessa condição de ser estrangeiro em um lugar, no caso no Brasil, e falar também sobre o silenciamento”. Para a autora, sua narrativa é “uma investigação sobre como é ser proibido de falar o seu próprio idioma, ter sua circulação restrita, ter a possibilidade de ter seus bens apreendidos, de ser considerado inimigo num lugar que por um período você estava construindo uma vida. Como era isso para a existência daquelas pessoas?”. Dessa maneira, ela considera que seu trabalho ficcional questiona as falsas ideias de que o Brasil é um país receptivo e hospitaleiro a todos. “A gente tem de tocar nestas feridas para não criar essas falsas ideias, porque essas falsas ideias ajudam a propagar mais xenofobia e mais intolerância. Mas é preciso fazer isso trazendo também os momentos de afeto”.
Nesse sentido também, para Lúcia Hiratsuka, escrever sobre este período não é somente uma forma de denúncia. “Para mim, tem que ter alguma coisa que me emociona, que me toca para começar a criar. A partir daí uma história vai se construindo. No caso de Os livros de Sayuri, tocou primeiro o enterro dos livros. Que imagem forte, me veio a vontade de contar uma história”. Mas, para Hiratsuka, as experiências dos migrantes japoneses e seus descendentes não foram negligenciadas apenas no Brasil. Ela acha que “houve um pouco de apagamento dessa história dos emigrantes no Japão e não parece haver um grande interesse para que os jovens conheçam esta história”. Segundo ela, havia um pensamento no Japão de que os emigrantes fossem considerados “como se tivessem fugido da guerra, como se fossem covardes. Durante as comemorações dos cem anos da imigração, creio que alguns seriados e documentários talvez mudaram um pouco essa ideia. Mas não sei se chamou a atenção dos jovens”.
Ser migrante, ser diferente
A sensibilidade para dar atenção a essas memórias subterrâneas e silenciadas por meio da literatura de ficção emergiu não somente das relações das autoras com seus familiares de ascendência japonesa, mas também da própria vivência delas enquanto migrantes no Japão, ao experimentar a condição de serem consideradas diferentes pelos japoneses. Para Kawasaki, sua percepção de que no Brasil “ainda existem muitas microviolências com a comunidade nipo-brasileira, que vem na forma de piada, de fetichização ou de brincadeiras na pronúncia de palavras” está estreitamente associada à sua experiência de ter passado parte de sua infância e adolescência como dekassegui no Japão. Apesar de às vezes haver uma curiosidade amistosa com relação a brasileiros neste país, ela sente que também há muita violência no dia-a-dia de brasileiros que migram para trabalhar temporariamente por lá. Por pertencer a uma família na qual seu avô japonês casou-se com sua avó brasileira, e seu pai nipo-brasileiro com sua mãe ítalo-brasileira, Rafaela sempre foi considerada alguém diferente pelos japoneses. Nas suas palavras, “eu tenho algo de japonês, mas eu tenho algo de japonês misturado. Um brasileiro dekassegui de aparência não tão nipônica, ele se sobressai como diferente. Nas ruas, a gente sofre muitas situações de violência, tanto de pessoas nas lojas ficarem grudadas na gente, como se a gente fosse roubar, nos seguindo ou alertando outro atendente sobre nossa presença, quanto de crianças jogarem pedra e falarem ‘Volta pro Brasil!’”.
No caso de Hiratsuka, sua experiência no Japão não se remete a episódios tão explícitos de preconceito. Ainda assim, ela também foi surpreendida quando se deparou com a vida por lá. Ao receber uma bolsa de estudos de uma universidade da região de origem de seus pais, ela relata que, “além de conhecer o Japão e ter contato com meus parentes, foi uma oportunidade importante para pensar a minha identidade também. Percebi que eu era muito diferente de uma pessoa da minha idade nascida e crescida no Japão. De início, foi um choque, porque aqui no Brasil me consideravam japonesa. No Japão, você descobre que não é bem assim, você se sente brasileira. Então fica um pouco desse sem-lugar, mas eu achei bom entender melhor essa identidade, principalmente o lado brasileiro”. De maneira semelhante, Kawasaki também questiona o lugar de sua identidade. “Eu não sou japonesa? Eu não sou brasileira? Em que lugar eu estou? Ou eu sou brasileira e japonesa? Qual é a minha identidade?”
Uma literatura entre identidades
É justamente no movimento sempre inacabado entre estar consciente destas questões e ir em direção a alguma resposta que ambas as escritoras exercem sua escrita, cada uma produzindo uma presença literária singular. Hiratsuka menciona o seguinte: “À medida que estou fazendo um novo livro, percebo que vou descobrindo mais do Brasil e de mim mesma, dessa identidade que não é só nipo-brasileira, mas também é a minha individualidade”. E ao explorar essa identidade, a autora considera que “quando construo uma narrativa, o cenário pode ser da roça, pode ser do Japão, pode ser a cidade de São Paulo, ou qualquer outro lugar, mas o ponto de partida é sempre uma questão humana, de como a vida é cheia de surpresas. Essas coisas inusitadas que a gente não espera, quando perguntamos se foi o acaso ou um fato do destino, ou um livre arbítrio. O ponto de partida sempre são os sentimentos humanos, de curiosidade, espanto, ciúme… O resto serve como pano de fundo”. Nessa direção, não se sente à vontade quando Os livros de Sayuri é classificado, por exemplo, apenas como obra associada à imigração japonesa ou associado a algum tipo de cota de diversidade, já que percebe seus livros circularem para além de tais rótulos.
De outra parte, é com tranquilidade que Kawasaki considera Peixes de aquário um livro que “entra nesse movimento de busca de identidades históricas e étnicas”, também produzindo uma certa descentralização, pois “apesar da história se passar em São Paulo, ela está num eixo de interior”, tendo sido escrita por uma autora que reside no momento no Paraná. Ademais, Rafaela reconhece que “é um livro que faz parte desse movimento de valorização da escrita pela mulher – se não de valorização, pelo menos de uma abertura maior”. Por isso, é também de modo afirmativo que ela reivindica uma identidade brasileira e amarela. “Eu me identifico como uma pessoa brasileira e como uma pessoa amarela. Para quem é mestiça como eu, você pode passar por branca no Brasil, mas você também não é branca e é importante ter consciência dessa raiz étnica. Então para mim, esses dois movimentos, tanto de reafirmação como brasileira, como de afirmação como pessoa amarela, são bastante importantes para a integridade da minha visão de mundo, até como mulher”.
É justamente na diversidade de estilos e experiências pessoais de vida e escrita que autoras brasileiras de legado nipônico estão trazendo para o debate público histórias que estavam “esperando” para ser escritas, conforme, citando Marina Colasanti, observa Hiratsuka: “às vezes a gente espera pela história, mas às vezes a história espera por nós».